domingo, 10 de janeiro de 2010

O sorriso de uma criança

Encarno um cenário que nada contingente
Na ociosa avidez de um ódio, que avulso
Imbui corpos escombrosos,
E neste cenário, lugubremente,
Choro, convulso.

Meus olhos vermelhos
Olham cidades que me marginalizam,
Cidades ainda crentes de um bem
Litúrgico forçado,
Que de bem nada tem.
Olvido as memórias que piso,
Cuspidas no chão,
Como se fossem senão enxurro:
São a cidade nédia do prazer de ciciar,
De falar sobre tudo, sobre nada falar.

Choro nesta cidade,
Onde o tempo é visível por todos
E todos são vistos pelo tempo.
Nos relógios, nos painéis, nas televisões,
Nos carros, nos eléctricos, nos comboios, nos aviões,
Nas visões,
Nas percepções e preocupações,
E o tempo imbui de adereços tormentosos
As previsões que pelas pessoas são feitas.

E choro.
Sossurro deplorado,
E dou comigo sitiado
Pelas horas cosmopolitas,
Meu olhar esparso
Percorre todos os olhos,
Todos os pedaços de algo vivo,
Toda a exaustiva extensão de prédios,
Todos os braços descomunais das pontes.
Ah, infernal bafo nocivo
E luzes que ofuscam a visão!
Doem-me os olhos, e cego deambulo por estas ruas,
Doem-me os vapores dos carros e das fábricas
Dói-me a ciência,
E colérico, grito e corro,
Mas desgarrada voz não grita,
Delidas pernas não correm,
E, enquanto flutua meu espectro cansado,
Meu olhar fita, neste averno humanizado, o longe.

E, no meio deste ímpeto metropolita,
Do tráfefo e das náuseas
E do frio e do cansaço,
De minha visão marejada, entrevejo
Luzir uma pequena figura
Que me traz de volta memórias distantes que desejo,
(Ah, tempos de outrora!
De facécia, de deleite, de esperança!)
Agrilhoadas nesse rosto imaculado,
Onde reconheço, por pensamento,
O clemente sorriso de uma criança!

1 comentário:

Margarida Vaz disse...

Miguel, és a forma inexacta da repugnação da humanidade e das ignomínias civís! És a voz que alguns temos cá dentro, mas que poucos de nós a conseguimos extraír.

Margarida